Condorcet e Diderot no Sex-shop ou porque disponibilizamos nossos livros em PDF

22 de agosto de 2022

Das coisas que a gente nem nota o quanto afetam: certa vez um aluno me disse que preferia ler em PDF. Não que era mais econômico. Ou mais prático. Mas, segundo ele, melhor, mais prazeroso. Fiquei o mais próximo de indignado que me permitiria em algo tão mínimo. O que estava em questão era uma relação pessoal e intransferível com a leitura, a respeito da qual não cabe argumentar. Mas, para mim, o livro como objeto sempre foi algo de muito especial, insubstituível. E, no entanto, agora que eu e meu grande parceiro Preto Matheus trabalhamos para imprimir e vender livros, neste projeto empresarial-utópico que é a SQN Biblioteca, fizemos a opção de disponibilizar os livros da editora gratuitamente em PDF.

Fazemos parte, Matheus e eu, daquela que foi a última geração que entrou no mundo da cultura anterior à disseminação da internet e, com ela, dos arquivos de mp3 e também PDF. Lembro de juntar minhas mesadas para encomendar CDs importados, prontamente gravados em fitas K7 para meus amigos que, por sua vez, retribuíam o mesmo gesto. Tais procedimentos eram obviamente consequências de privilégios econômicos e culturais impossíveis para ampla maioria da população brasileira de então. Mesmo assim, o prazer que sentíamos ao acessar  qualquer informação cultural que escapasse ao ciclo do que estava mais facilmente disponível nos grandes meios de comunicação da época é difícil de ser descrita para as atuais gerações de nativos digitais, acostumados com o mundo na ponta dos dedos. No meu tempo de faculdade, a regra eram os textos em xerox, que haviam já há algum tempo criado a possibilidade de cursos constituídos de uma montagem de textos pequenos, por oposição aos caros e monolíticos livros-texto de gerações anteriores. Mas para a geração dos meus alunos, o texto em xerox já é demasiadamente caro e pouco prático. E, de fato, hoje todos nós nos beneficiamos do acesso à informação, mesmo a mais densa, por meio de PDFs, tanto os formais – de plataformas como Scielo, JSTOR, Domínio Público e aquelas de inúmeras revistas científicas e universidades brasileiras – quanto, sejamos honestos, os menos garantidamente legais. 

Cabe retomar então, com a honestidade intelectual que também merecem questões como a da legalização das drogas, à discussão da informação e das artes enquanto propriedade. Muito antes da internet, nas décadas que antecederam a Revolução Francesa, os Iluministas Denis Diderot e Nicolas de Condorcet desenvolveram concepções opostas sobre a propriedade do que então se denominava “obras do espírito”. Diderot defendeu, em texto sintomaticamente encomendado pelos livreiros parisienses, que, por mais que todas as ideias derivem de ideias anteriores, a configuração textual específica constitui propriedade de um autor, passível de ser vendida com exclusividade para um livreiro. Já para Condorcet tal concepção de propriedade era nociva e contrária ao interesse geral, que seria representada pela livre circulação de informação, sendo que as expressões, frases, palavras e “composições agradáveis”, aquilo que compõe a particularidade dos textos, seriam para ele desimportantes frente às ideias e aos princípios, que pertenceriam à humanidade como um todo.

À primeira vista, poderíamos considerar as posições de Diderot e Condorcet como sendo, respectivamente, conservadora e revolucionária. Mas, apesar de eu mesmo me alinhar muito mais com a proposta de Condorcet, é preciso reconhecer que na posição de Diderot, além da semente dos oligopólios corporativos de copyrights, está embutida a justa reivindicação da profissionalização dos autores. Não parece coincidência, portanto, que esse último fosse filho de um cuteleiro, ao passo que Nicolas havia herdado o título de Marquês de Condorcet. Ainda hoje, viabilizar financeiramente pequenos projetos culturais independentes é fundamental para garantir que as esferas culturais e artísticas não sejam inteiramente dependentes das ações, por vezes erráticas, do Estado ou, pior ainda, dos ditames do grande capital.

Além da questão econômica, cabe sublinhar o relativo desprezo de Condorcet, matemático e filósofo, para com os elementos que tornam cada texto único, por oposição à sua valorização por Diderot, autor de Jacques, o fatalista. Pois como salienta em livro recente Italo Moriconi: “O ‘valor literário’ é o valor de fetiche do objeto de linguagem que disciplinarizamos como literário”. A literatura é fetiche, desejo projetado no que há de específico em um texto, naquilo que seria destruído talvez pela sua paráfrase.

Quem escreve se insere na economia libidinal da literatura através do desejo de ser lido. Quem lê deseja acessar o corpo do texto, poder atravessá-lo. Para ambos talvez bastassem os PDFs. Mas para editores e bibliófilos também o livro é fetiche, sua materialidade plenamente fundida com a de certa iteração de um texto, uma edição, um exemplar – por vezes pesadamente tatuado de anotações, signos de possessão. Daí o meu incômodo do primeiro parágrafo: na minha própria experiência, o autor esconde em si algo de editor e o leitor algo de bibliófilo. Temos aqui novamente uma relação pessoal e intransferível com a leitura. O suficiente, no entanto, para querer montar um sex-shop. Digo, editora. Em suma, um empreendimento centrado no fetiche e no desejo – no nosso caso aquele do texto e do livro. 

A nossa aposta é que aqueles que forem conquistados pelos textos desejem também os respectivos livros, cuja invenção formal e material é garantida pela criatividade e ousadia de Preto Matheus – que tantas vezes dissolve a fronteira entre design gráfico e artes plásticas. Mas também, que quem não puder ou não quiser pagar por eles, tenha acesso liberado aos textos. Que eles – textos – sejam livres, como esperamos sermos todos algum dia.